4° Fragmento do texto : Um Escândalo na Boêmia
Dormi na Baker Street naquela noite, e estávamos tomando o nosso café com torradas quando entrou apressadamente o rei da Boêmia.
— O senhor a apanhou realmente? — gritou ele, segurando os ombros de Holmes e olhando-o, aflito.
— Ainda não.
— Mas tem esperanças de apanhá-la?
— Tenho.
— Então vamos, estou impaciente por partir.
— Precisamos de um coche.
— Não, meu carro está à espera.
— Isso simplifica bastante o caso.
Descemos e mais uma vez fomos à Vila Briony.
— Irene Adler está casada — disse Holmes.
— Quando se casou?
— Ontem.
— Mas com quem?
— Com um advogado inglês chamado Norton.
— Mas ela não o ama!
— Espero que sim.
— E por que espera o senhor que sim?
— Porque com isso pouparemos muitos temores no futuro a Vossa Majestade. Se a esposa ama o marido, não ama Vossa Majestade, e assim não há razão para interferir nos seus planos.
— Isso é verdade, todavia… Bem, gostaria que ela fosse da minha raça e posição. Que elegante rainha teria sido! — Calou-se, e o silêncio continuou até que paramos na Serpentine Avenue.
A porta da Vila Briony estava aberta, e uma senhora idosa encontrava-se nos degraus. Fitou-nos quando descemos do carro e em voz sarcástica perguntou:
— Sr. Sherlock Holmes, creio?
— Sim, sou o sr. Holmes — respondeu o meu companheiro, olhando surpreso para ela.
— Deveras! Minha patroa disse que talvez o senhor viesse fazer-lhe uma visita. Ela foi embora com o marido hoje de manhã, no trem que parte às cinco e quinze de Charing Cross para o continente.
— O quê? A senhora quer dizer que ela deixou a Inglaterra? — exclamou Holmes, surpreso e desapontado.
— Sim, e nunca mais voltará.
— E os papéis? — perguntou o rei. — Então está tudo perdido.
— Vamos ver. — Holmes entrou bruscamente na casa e dirigiu-se à sala, seguido pelo rei e por mim. A mobília estava em desordem, as gavetas, abertas como se a senhora as tivesse esvaziado para fugir. Holmes foi direto à corda da campainha e abriu a portinhola do armário. Enfiando a mão dentro dele, de lá retirou um retrato e uma carta. O retrato era de Irene Adler em traje de soirée. A carta estava endereçada a “Sherlock Holmes, para ser entregue quando procurada por ele”. Meu amigo abriu-a e nós a lemos juntos. Estava datada da meia-noite do dia anterior e dizia:
“Meu caro Sherlock Holmes,
O senhor realmente representou muito bem a farsa e enganou-me completamente; até depois do alarme de ‘fogo’ não tive a menor suspeita. Mas quando percebi que me havia traído, comecei a pensar. Eu tinha sido avisada contra o senhor há tempos, e sabia que, se o rei empregasse qualquer agente, haveria certamente de ser o senhor. Deram-me o seu endereço, e, apesar de tudo, o senhor fez com que eu me traísse e assim ficou sabendo o que queria descobrir. Mas depois de ter tido suspeitas, achei difícil pensar mal de um velho e bondoso clérigo. Mas, não se esqueça, também sou atriz experiente. Roupa masculina não é novidade para mim, e muitas vezes me aproveito da liberdade que ela me proporciona. Mandei John, o cocheiro, vigiá-lo, subi para o quarto, vesti a roupa de passeio, como a chamo, e desci logo depois que o senhor saiu. Bem, segui-o então até sua porta, para ter a certeza de que verdadeiramente eu era objeto de interesse para Sherlock Holmes. Aí, um tanto imprudentemente, saudei-o com um ‘boa-noite’ e fui até o foro ver meu marido. Ambos achamos que a melhor coisa a fazer seria a fuga, quando perseguidos por tão notável antagonista: por isso, encontrará o ninho vazio ao chegar aqui amanhã. Quanto à fotografia, seu cliente pode ficar descansado, sou amada e adorada por um homem muito melhor do que ele. O rei pode fazer o que quiser, que não será incomodado por uma pessoa que ele injuriou cruelmente. Guardarei a fotografia somente para minha segurança, e para conservar uma arma que sempre me há de salvaguardar de qualquer cilada que ele possa armar no futuro. Deixo outra fotografia — talvez ele a queira possuir —, e sou, caro Sherlock Holmes,
muito sinceramente,
Irene Norton, née Adler.”
— Que mulher! Oh, que mulher! — gritou o rei da Boêmia, quando acabamos de ler. — Eu não lhes disse que era esperta e decidida? Pena que não seja da minha posição!
— Minha dedução disto tudo é que ela parece ser de um nível muito diferente do de Vossa Majestade — disse Holmes friamente. — Sinto não ter podido dar aos seus negócios uma conclusão mais satisfatória.
— Pelo contrário, meu caro senhor — disse o rei —, nada poderia ser melhor. Sei que a palavra dela é inviolável. A fotografia agora está tão segura como se tivesse sido atirada ao fogo.
— Regozijo-me que Vossa Majestade diga isso!
— Devo-lhe muito, senhor. Diga-me de que modo posso recompensá-lo. Este anel… — e tirou do dedo um anel de esmeraldas que colocou na palma da mão.
— Vossa Majestade tem uma coisa a que eu daria mais valor ainda — disse Holmes.
— O senhor a terá, diga o que é.
— Esta fotografia.
— A fotografia de Irene! — exclamou ele. — Com certeza, se a deseja.
— Agradeço a Vossa Majestade. Não há nada mais a dizer sobre o assunto. Tenho a honra de desejar-lhe um muito bom dia. — Curvou-se e, virando-se, sem reparar na mão que o rei lhe estendia, saiu comigo em direção ao seu apartamento.
E foi assim que o reino da Boêmia foi ameaçado por um grande escândalo e que os melhores planos de Sherlock Holmes foram frustrados pela sagacidade de uma mulher. Ele antigamente zombava da esperteza das mulheres, mas ultimamente não o tenho ouvido dizer mais nada. E quando se refere àquele retrato, é sempre sob o título honroso de a mulher.
Leia o texto na íntegra aqui
Perguntas:
1. O que você achou do final do conto? Por quê?
2. Em que as atitudes de Irene foram parecidas com as de Holmes?
3. Que atitude de Holmes mostra o quanto ele passou a valorizar Irene?
4. Somente no final o narrador explicita aquilo que o bom leitor já tinha percebido por meio da análise das falas de Holmes: "Ele antigamente zombava da esperteza das mulheres".
- Por que você acha que ele não falou isso antes?
Fonte: Perguntas retiradas do ivro Singular e Plural, Editora Moderna
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